22.6.04

Capoeira

"Se você pegar aquele neguinho ali, ganha vinte pontos comigo!!!"
Era minha primeira aula de direção. Eu, ruço feito um missionário finlandês e o instrutor já me solta uma dessas. Fomos em frente.
"Derruba o tabuleiro de acarajé. Puta que pariu, ali deve tá um cheiro! Há há há!!!"
Minha mãe verdadeira me abandonou na porta de uma instituição de caridade, um pouco depois de eu ter nascido. Ela deve ter pensado que eu ia me dar bem mas aquilo não era nenhum orfanato. O Juizado de Menores me mandou para uma fundação, onde , por motivos claros, todos me conheciam, do diretor até o coleguinha mais remelento. Um monitor me botara o apelido de Mariposa de Manchester porque no refeitório eu podia ser notado facilmente no meio da negada. Por conta desse patronímico , as porradas aumentaram um pouco mais. Apesar de quase albino eu não deixava a coisa ficar tão preta assim. Eu também batia e era problemático.
"Porra, galeguinho!!!"
"O quê?"
"Se o sinal não tivesse fechado, tu passava em cima desse macaco velho aí, hein?! Bônus de 35 pontos!!!"
Um dia uma organização não-governamental começou a patrocinar aulas de capoeira no pátio interno. Tive que arrumar uma confusão para poder ver mais de perto a roda. Donos de uma ideologia inconsciente e empírica, os meus coleguinhas não queriam que eu participasse de nenhuma forma daquilo, coisa de preto, mas eu ferrei com alguns deles e consegui ver. Eu fiquei maluco. Os caras da capoeira voavam, pareciam não pesar nada. Caramba! Parecia um circo. Perguntei para mim mesmo se um dia eu poderia fazer aquilo. Do nada, eu juro por Deus e por São Jorge, eu escutei uma voz de mulher dentro da minha cabeça: "claro que pode". Fiquei bobo. Não era a voz da assistente social, a Inês, que volta e meia andava por lá.
De repente todo mundo ficou atônito. Uma mulher mais velha entrou na roda e derrubou todos os lutadores. Um rabo de arraia para um, um martelo para outro, uma armada para o de cabelo rasta, um aú no careca e o serviço estava terminado. Todos uns negrões fortes prá caralho. A demonstração havia terminado. A mulher, negra, forte e linda, passou por mim rapidamente. Sem abrir a boca ela me fez saber que me queria ali quando as aulas começassem. Como era possível? Eu lia os pensamentos dela e ela os meus. Uma mão posou no meu ombro, grande e grossa. "Quinta feira." Era um dos capoeiristas. Ele olhou nos meus olhos. Seus lábios. Sua boca. Sua língua. Imóveis. "Irmão."
"É ruim desse carvão pegar brasa, hein?!?!?!?" O instrutor engasgara de tanto rir. Nós acabávamos de passar por Rosa que abanava seu filho mulato por causa do calor. "Olha o meio fio, garoto!!!"
Aqueles capoeiristas formavam uma família. Todos eles sob a égide da matriarca Maria José da Conceição, a Mestra Zeza. Um tempo depois das aulas começarem e eles terem me posto nos eixos, eu estava fazendo parte do grupo. Não sei se por pena, se por amor, desejo de domar o meu peito cheio de revolta ou pelo meu talento de telepata, dona Maria havia me adotado, assim como havia feito com alguns no grupo.
Aquela capoeira era a soma de várias tradições que haviam perambulado por Serra Leoa, Salvador e Macau, na China. Essa última paragem talvez explicasse a bizarra capacidade telepática - supostamente detida apenas pelos ninjas - que os seus raros conhecedores possuíam. O clã de Mestra Zeza era uma ponta de lança afiadíssima daquele estilo obscuro de capoeira e eu, apesar de não saber como era capaz de fazer aquelas coisas, vinha fazendo parte dele há dez anos, como irmão e como filho.
O instrutor, esbaforido, me mandou encostar o carro atrás de um Fusca. Muito fácil. Saltamos e ele veio me falando que na próxima aula nós iríamos botar para quebrar e que eu poderia passar a quarta. Meus irmãos estavam enfileirados um pouco mais à nossa frente. Um exército. Mestre Focinho. Fio. Pata de Vaca. Nêgo. Verniz . Bola. Jackson. China. Grilo. Gazú. Bento. Careca. Zuza, esse com sua mulher, Rosa e o seu filho. Postada na parte do meio, como um técnico de futebol, Mestra Zeza. "Eu amo todos vocês. E você, mãe!" Entre mim e eles, como um fio de telefone, o silêncio.
Voltei-me para o instrutor, mais branco que eu. "Quando é o próximo treino?"
"S-s-segunda feira!"
Fomos embora, descendo a ladeira, rumo ao Pelô.

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