14.12.06

"como consegui aquela mancha de ovomaltine" ou "..."


no quiosque franquiado de uma grande empresa de telefonia móvel eu explico minha situação.
- isso não toca.
a moça não me compreende.
- eu botei até uma música e configurei o vibracall mas ele vive mudo.
ela pega o aparelho das minhas mãos e o rodeia, examinando rapidamente as suas facetas.
- qual é o seu número? - pergunta sacando o seu próprio.
- 8888 * * * * (n.e.: número ocultado por razões de privacidade)
ela tecla e na velocidade da luz, escutamos a música do seriado "missão impossível"
- ué, olha - diz, inclusive surpresa com a intensidade das vibrações.
finjo-me confuso e envergonhado.
- mas eu passo o dia todo com ele e nada. pensei que estivesse com defeito.
a funcionária, ainda solícita, me instrui para verificar a seção "chamadas atendidas".
- o quê?
- no menu, senhor.
- onde?
- aqui. com licença.
passo-lhe novamente o aparelho. ela faz estalar um monte de vezes o bip e constata:
- mas ninguém ligou para o senhor.
eu a encaro enquanto ela continua a vasculhar e provocar vários bips.
há mais ou menos um mês, eu a descobrira naquele espaço exígüo no mall do shopping. tinha uma aparência de evangélica ortodoxa com longos cabelos, porém a calça do uniforme anulava o meu diagnóstico. ela sorria para os clientes, num zelo que transcendia o montante de comissões da semana.
no trajeto do meu trabalho para casa, eu passava por aquele corredor todos os dias e ela foi incluída na minha paisagem. uma vez, sentei num banco com boa visão para o quiosque e sorvi quase um litro de milkshake olhando-a furtivamente. na verdade, foram duas vezes. na segunda fingi que estava lendo relatórios do serviço. temi que algum segurança notasse minha campana ou me confundisse com um assediador. fiz isso mais vezes?
felizmente, não fui encaminhado para o setor de patrimônio.
tentei colher detalhes da sua vida. só descobri o seu nome, que era roberta, porque o seu colega de trabalho, um cafuzo, chamou-a avisando sobre um telefonema.
pensei que estivesse ficando louco com aquela veneração, mas concluí que poderia falar com ela. por que não? eu não batia as metas na empresa? não poderia lhe dirigir a palavra ou fazer um convite?
veio, então, a idéia do celular com defeito. estive numa palestra sobre criatividade com um guru do marketing e acho que fiquei inspirado. num determinado momento da apresentação, um slide espocou e o que se pôde ver foi a fotografia de um panda filhote segurando um aparelho celular. as mulheres presentes se comoveram e se escutou um sonoro "óóóóóóóóó" misturado com "aaaaahhhh". descontando o fato desses ursos só procriarem uma vez por ano, inventar uma carapaça de bebê panda poderia funcionar.
não!
iria com certeza funcionar. "mentalize, mentalize".
com tantos atendimentos ao longo do dia, ela não poderia me identificar nem como pedestre eventual de corredor de shopping. ou poderia? uma vez ela me notou por mais de um segundo. mas que diabos isso importava?
o meu silêncio a alertou. dividi sua pupila esquerda em duas metades e olhei bem em cima do que seria o meridiano de greenwich. uma voz gritava comigo: o panda, o panda.
- senhor?
botei minhas mãos sobre o vidro do balcão.
- não!
- ????
- não me chama de senhor. senhor está... - apontei para cima. um clichê.
- !!!!
- v-você...não quer fazer uma segunda ligação para mim?
- como?
- você ligou para mim agora, não foi?...
(suspiro)
-...uma hora dessas em que você estiver livre e quiser ver um filme, passear, jogar no bingo...sabe? - o meridiano me fugia: você pode me ligar de novo. meu nome é murilo.
era como se eu estivesse anunciando um assalto e avisado entre os dentes para ela ficar quietinha. ou mais ou menos isso. um assédio a uma hora daquelas?
assédio não! assédio é uma cantada mal dada. e essa cantada havia sido um primor. não tinha?
só aí notei que havia um homem escuro ao lado, roçando um pedaço de tergal no meu antebraço. perto do seu ombro treinado estava escrito: "protege". uma voz de rei leão rompeu:
- tudo em ordem, garotinha?
os pêlos da minha nuca levantam e minha bomba de sangue liga no automático. os músculos ficam travados e um sabor de biotônico fontoura banha minhas papilas. dali a poucos segundos sovaqueiras tingiriam o tecido da minha social e eu seria o típico espécime abordado nesses documentários sobre predadores.
uma voz saída do rádio do homem pareceu pronunciar algo como "operação morangos com creme" ou "bip bip".
por um momento, acho que roberta está presa numa fotografia.
- seu sandrão! - saúda com as últimas vogais alongadas e isso não parece ser nenhum código de perigo - tá sumido, hein???
- tava de licença. nervo ciático, sabe? - e o homem prosseguiu na sua ronda.
procuro o meridiano de novo, mas ele dança na minha frente.
flashes de uma outra palestra sobre motivação me vêm a mente. assim como as últimas palavras de algum livro do lair ribeiro ou do dale carnegie. uma letra do renato russo. ou o desenho do leão da montanha. "saída pela..."
- de que sabor é aquele milkshake que você toma? - sua voz é incisiva porém num tom mais baixo, um cochicho.
aí o mundo caiu. que nem a implosão daquele presídio centenário. só que rodando de trás para a frente com as paredes de tijolos se reagrupando sinfonicamente.
- se você não estiver com pressa...meu intervalo é daqui a...
- ...eu espero.
- eu faço a segunda ligação.
- ovomaltine.
- o quê?
- o milkshake. é de ovomaltine.
- eu adoro.

3 Comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Queria saber de onde vem tanta criatividade. Juro que queria ser assim!!!Meio doida essa história, mas muito bem escrita. Sou supeita, sou sua fã desde da outra encarnação.
Beijos.

7:54 PM  
Blogger André Monnerat disse...

Cara, vou te contratar pra ser meu estagiário na minha próxima novela!

2:53 PM  
Blogger Unknown disse...

hahahahaaha, muito bom véio!
Eu li o texto e ao mesmo tempo me transportei para o recreio shopping. De frente pra C&A onde tem um quiosque do Mc Donald's. DE frente pra porta da C&A tem a parte de telefonia.

Você foi lá né seu tarado!! rsrsrsrsr

8:34 PM  

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