11.2.08

dentes trancados

ela se levanta do banco de concreto e se dirige a uma parte em frente à parede, bem embaixo do buraco do aparelho de ar condicionado, onde há uma fresta. com os joelhos flexionados, coluna arqueada e procurando uma posição da cabeça, parece dançar desesperada atrás de um bom ângulo para espiar dentro da sala de cirurgia do setor de buco-maxilo do hospital universitário. demora-se alguns segundos e com ar de frustrada, retorna ao mesmo lugar.
em salas de espera - nesse capítulo, uma situada no relento - de unidades de cirurgia podem-se escutar as histórias mais bizarras, das quais só se toma conhecimento sendo acadêmico da área de saúde e folheando, por acaso, livros médicos com fotos ilustrativas e pouco indicadas para leigos. ou então sendo parente de alguém que tenha sido sorteado com alguma disfunção ou deformidade, em certos casos, perfeitamente corrigível por intervenção cirúrgica, ou uma série delas.
- tão extraindo os cisos da minha filha... - parece pensar em voz alta, talvez para não parecer maluca.
- quantos? - ele pergunta solícito para amortecer a solidão da mulher.
- os cinco!
- os cinco? mas...
- sim, se bem que o quinto nasceu no céu da boca e eles tão tendo que descolar um pedaço do palato para poderem ver o desgraçado e arrancarem.
ele, que não poderia imaginar coisa pior do que o som do boticão quebrando o último dente na parte inferior de sua arcada - onomatopéia desagradável mesmo sob o efeito de anestesia, depara-se, aparentemente, com um destino menos aprazível que o seu.
- ela está lá há quase duas horas...
sem saber o que dizer ou sem querer falar nada gratuito, ele não fala nada.
alguns segundos se passam e ela parece fazer menção de ir fazer a mesma dança em frente à parede mas desiste.
- quem está fazendo a cirurgia em sua filha?
- o doutor albuquerque.
- olha, não se preocupe. ele retirou os meus dois cisos e no dia seguinte eu só não fui jogar bola porque sou pereba - finalmente, alguma coisa lhe viera à cabeça. inócua, certamente, mas espirituosa.
mais alguns segundos, numa tentativa de aplainar sua angústia atual, a mãe então acessa um episódio odontológico um pouco mais remoto.
- pior foi meu filho.
a imaginação naquela hora não lhe funcionou, então, uma curiosidade mórbida entrou em modo de espera.
- o que aconteceu com o seu filho?
- ah, moço, que judiação! desde cedo ele tinha um beiço maior que o outro. mais esticado, sabe?
- hum-hum! - lembrando-se do booba, amigo do forrest e seu parceiro no negócio milionário também conhecido como booba-gump, ou coisa parecida.
- o de baixo, com o queixo lá na frente. aquilo foi aumentando, aumentando... até que alguém falou para a gente trazer ele aqui para o doutor albuquerque. e eu nem sabia que isso aqui existia.
levaram o garoto, àquela altura, com quinze anos completos. fizeram várias panorâmicas, chapas de raio x, bombardearam-no de tal modo que descobriram que o único jeito de curar aquele queixo anormal era serrando suas mandíbulas. a simples audição do
que seria aquele procedimento provocou-lhe onda de dores que varreram suas pernas de cima abaixo. era isso ou o beiço ficar pendurado expondo o jovem às tiradas irônicas e impiedosas dos colegas, que poderiam - e certamente o fizeram - apelidá-lo de mandíbola (sic), beiçola, queixada, javali ou simplesmente, drácula. ou nas previsões do buco-maxilo ter danificada a fala, deixando-o fanho e fazendo aumentar as dores de cabeça que o perseguiam há tempo.
de fato, serraram o osso abaixo das orelhas, trazendo o queixo para o lugar onde deveria ficar, o que seu genoma não havia permitido. o que parecia mais terrível de tudo, na verdade, era apenas o começo de um martírio que duraria no mínimo seis meses, porque, para os ossos ficarem na posição certa, os médicos foram obrigados a imobilizar aquele conjunto ósseo levando o menino a ficar com a boca grampeada, logo, não podendo abrí-la, nem mesmo para comer. a alimentação seria líquida e sugada através de um fino canudo que passaria entre seus dentes quase totalmente crispados.
- ele demorou para se acostumar, moço. em casa, chorava e só podia chorar com os olhos.
escutava a mãe e inevitavelmente imaginava o pranto do garoto com os músculos da face contorcendo os lábios para cima deixando à mostra as arcadas que, naquele momento, teriam que ser como xipófagos.
- mas ele levou até o fim.
- e como ele ficou? - perguntou se deixando levar pelo entusiasmo, já que estava prevendo um final feliz.
- ah, ele ficou ótimo, bonitão - deixou abrir um sorriso - ninguém diz que ele passou por tudo isso. hoje, ele tem 22 anos e é um negão enorme e cheio de namoradinhas.
- é?

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faz calor no subúrbio e as cortinas do quarto estão fechadas. ele mesmo fechou. são quase cinco da tarde e as expectativas de uma jornada noite adentro com uma companhia feminina pouco a pouco são desmontadas.
meses atrás, preferia ficar em casa do que percorrer léguas e léguas, muitas vezes de ônibus, para ver janice. mesmo assim, aparentemente a contra gosto, ia ao seu encontro e ficava se perguntando por que estava com ela. de qualquer forma, esses encontros o preveniam de passar as noites de sábado com a sensação de solidão, apesar de janice ir para a cama dormir minutos depois de ele chegar a sua casa, deixando-o sozinho vendo televisão. isso das 20 às 4h da manhã do dia seguinte, quando, finalmente, a insônia era vencida por um coquetel de três comprimidos encomendados na homeopatia, contendo valeriana, avena e passiflora, surrupiados da namorada, que andava meio nervosa, mas dormia que nem uma estátua.
nas raras viagens de carro, o balanço do trajeto fazia janice dormir transformando-o num tipo de motorista de ambulância geriátrica. ele desconfiava que não era culpa do percurso e sim o fim do encanto e da admiração que ela um dia disse ter sentido. ele nessas horas se ressentia e desejava ser capaz de compor uma canção cafona que poderia muito bem ter o título de “eu queria que você me amasse de novo”.
ao perceber-se efetivamente sozinho, apesar de estar, segundo os critérios do ibge em situação de namoro, uma espécie de bovarismo o fazia sonhar com os carinhos de outro alguém. uma mulher sem rosto mas de silhueta promissora. sem um timbre definido de voz mas de mensagens amorosas decididamente entregues.
aquela fantasia tornou-se uma espécie de mantra usual nos seus momentos de ócio. nesse meio tempo, sentia saudades de janice, mas talvez de uma janice do tempo em que se conheceram e se interessaram um pelo outro. ele dizia isso nos telefonemas que dava, quase de forma protocolar, àquela altura dos acontecimentos, e ela respondia dizendo que havia comprado uma calça jeans nova, deixando-o preocupado com a acuidade auditiva da companheira.
havia escutado o conselho, em algum programa de rádio de amplitude modulada, mais especificamente dirigido às donas de casa, para se ter cuidado com os sonhos, pois eles poderiam se tornar realidade. tratava-se, na verdade, de um clichê muito antigo e recorrente nos livros de auto-ajuda, mas não, por isso, algo raro e inalcançável. tanto que aconteceu com ele.
esbarraria na calçada de uma rua no centro da cidade com uma velha conhecida, não muito íntima, que há muito tempo não via. maiara estava desaparecida porque percorreu o mundo estudando música clássica se valendo de bolsas concedidas sucessivamente pelo governo federal. de volta ao país, tivera a falta de sorte de encontrá-lo justamente naquela situação de “complete as lacunas” inscrita implicitamente na sua alma. aventureira de coração, maiara, neta de índia, não viu problema nenhum ao se aproximar perigosamente daquele correspondente de tempos atrás que enviava crônicas bem promissoras pelo correio eletrônico. ela havia deixado um namorado na antuérpia em standby e ele uma em nova iguaçu. no entanto, nada acionaria qualquer pudor que segurasse o ímpeto de ambos. logo estariam os dois numa espécie de estado febril em que pensavam compulsivamente um no outro e sentiam saudades mútuas, assim que se beijaram e abraçaram uma única vez numa festinha para qual ela o convidou.
janice já não gostava mais dele mesmo. era uma questão de tempo que ela viesse querendo lhe encontrar para ter uma conversa séria. ele calculava. maiara, por capricho do enredo, tivera que ir morar em brasília, fato que não a demoveria dos planos de receber pelo menos uma visita dele. talvez no feriado de finados como ele, num impulso lhe propôs, o que foi prontamente aceito.
só que o recesso estava longe no calendário e ele temia que maiara, tão cheia de vida, tão valiosa e tão bonita enveredasse por outro romance furtivo. ao ser notificada de seus receios maiara o tranquilizou, afirmando categoricamente: “eu não gostaria de ninguém como eu gosto de você!”.
janice a cada dia se transformava em um rosto desconhecido, mesmo que ele soubesse tantas coisas a seu respeito. compradas as passagens para brasília, uma culpa o assaltou de modo atroz e, com isso, ele acabou assinalando mentalmente que duas semanas antes de sua viagem marcariam seu prazo fatal para que ele terminasse tudo com janice, custassem as lágrimas, tapas, cobranças atrasadas ou, quiçá, a mais pura indiferença.

(isso continua assim que possível)

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